sexta-feira, novembro 24





“Foi um homem fora do seu tempo. Um homem do Renascimento que, por qualquer razão, apareceu no século XX”, observou Manuel Freire que, no liceu, estudou num Compêndio de Física e Química de Rómulo de Carvalho.

“António Gedeão ganhou força e ‘saiu’ quando Rómulo de Carvalho já tinha 50 anos”, recordou, referindo-se a ‘Movimento Perpétuo’, o primeiro livro de poemas de Gedeão, lançado em 1956, aos 50 anos.

Os seus primeiros poemas datam, no entanto, de 1911. Seis anos depois, com onze de idade, quis continuar ‘Os Lusíadas’ e publicou sete estrofes do Canto XI no jornal ‘Notícias d’Évora’.

Manuel Freire guarda boas recordações do poeta e cientista, “uma pessoa gentil” que, no entanto, “intimidava um bocadinho. Falava sempre com um ar severo e sério, tanto nas aulas como a conversar”




António Gedeão



Nascimento: 1906 Lisboa
Morte: 1997
País: Portugal



Poema do ser inóspito

No cubículo estreito onde a criança
dorme no homem como um ser inóspito,
duplas são as paredes e, na boca,
uva de moscatel, acaime de aço.
Dorme, crainça, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.
Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insectos, as pedras, as estrelas,
e tudo quanto é belo e se reflecte
nos olhos das crianças.
Imagina um luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça.
Orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.

1983


Dados biográficos:

Poeta, professor e historiador da ciência portuguesa. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, concluiu, no Porto, o curso de Ciências Físico-Químicas, exercendo depois a actividade de docente. Teve um papel importante na divulgação de temas científicos, colaborando em revistas da especialidade e organizando obras no campo da história das ciências e das instituições, como A Actividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos Séculos XVIII e XIX. Publicou ainda outros estudos, como História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1959), O Sentido Científico em Bocage (1965) e Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII (1979).
Revelou-se como poeta apenas em 1956, com a obra Movimento Perpétuo. A esta viriam juntar-se outras obras, como Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de Força (1967) e ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990). Na sua poesia, reunida também em Poesias Completas (1964), as fontes de inspiração são heterogéneas e equilibradas de modo original pelo homem que, com um rigor científico, nos comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da solidão humana, muitas vezes com surpreendente ironia. Alguns dos seus textos poéticos foram aproveitados para músicas de intervenção.
Em 1963 publicou a peça de teatro RTX 78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de ficção, A Poltrona e Outras Novelas (1973). Na data do seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago de Espada.


"...Eu tenho sobre a história uma ideia que está longe de ser a mais frequente. Penso que, quem faz a história, não é o governo de uma nação. Sou eu, a vizinha do andar do lado e o merceeiro que está estabelecido com loja na esquina da rua. É o par de namorados que passa de lambreta ou o operário que vai para a oficina com a malinha do almoço. É o poeta, é o pensador, é o cientista, é tudo, toda a gente, a que sai e a que fica em casa, todos, todos, excepto os que compõem o governo. Esses só têm uma atitude permanente, que é a de, atónitos, solucionarem, ou verdadeiramente ou falsamente, os problemas que lhes são impostos..."

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